segunda-feira, 27 de julho de 2009

Perigos da literatura

Artigo de Daniel Piza publicado em O Estado de S. Paulo de 01/02/2009.

Não é só nos debates políticos e econômicos que o sessentismo anda em baixa. Leia A Literatura em Perigo (Difel), um pequeno e despretensioso livro de Tzvetan Todorov. Que um dos expoentes do estruturalismo, discípulo de Roland Barthes, se revolte contra as teorias literárias ainda dominantes entre professores e críticos, sobretudo na França, é fato a saudar. Todorov já não suporta a análise da literatura como se ela fosse desconectada da vida, dos temas da condição humana, uma análise que a reduz a jogos de linguagem. Para os defensores da “desconstrução”, nada existe além do texto, logo a literatura só fala de literatura. Esse solipsismo, diz Todorov, ignora o contexto humano – a posição ambivalente da estética, entre beleza e conhecimento – e reforça o declínio da literatura na sociedade, a pouca familiaridade dos jovens de hoje com as “sensações insubstituíveis” da leitura.


“Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas”, escreve ele logo no início, a literatura “permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.” No final, define melhor a utilidade de uma obra literária, que “produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação”. Ou seja, Todorov não está defendendo a importância da imaginação, a noção vulgar de que os livros servem para um escape da realidade ou um consolo à esperança; ele vê a ficção de um Shakespeare, Dostoiévski ou Proust como um instrumento de interpretação da realidade, da natureza humana, não superior ou inferior à ciência, mas autônomo e, talvez, complementar. Somos criados à base de medos e chavões, e nada como a literatura para nos dar armas de libertação. Nesse sentido, é sempre perigosa para o senso comum.

Todorov, porém, cai no dualismo de sua geração ao revelar no ensaio um ponto de vista quase diametralmente oposto ao que defendeu na juventude. (É como aqueles sujeitos marxistas que, diante do fracasso soviético, passaram a defender o capitalismo selvagem – às vezes chamado de “natural” – como se o mercado não tivesse de ser fiscalizado e canalizado.) Comete o erro de culpar o modernismo de Flaubert em diante, principalmente as vanguardas do início do século 20, por essa visão formal da literatura. Lembra o debate do autor de A Educação Sentimental com George Sand e dá a ela razão por se queixar do pessimismo do amigo. Bem, a maioria dos grandes escritores não assinou finais felizes por um motivo claro: eles estavam (e estão) reagindo justamente à tendência convencional de se iludir facilmente, de acreditar em qualquer crença ou doutrina que resolva sistematicamente os problemas do mundo. Agora me diga quem é mais lido hoje em dia: Flaubert ou George Sand?

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É bobagem dizer que “ler demais faz mal”, como ouço às vezes. O problema não é a quantidade de leitura, mas o modo como ela é feita; se ela passa a tomar o lugar da vida, a substituir experiências reais em vez de iluminá-las, aí, sim, se pode falar na existência de um problema. Muitos intelectuais o encarnam, exemplos que são de falta de praticidade, atratividade e sensatez... Todorov se queixa de frases de literatos como “a verdadeira vida é a literatura” e “tudo existe para terminar num livro”, respectivamente aludindo a Borges e Mallarmé – frases que parecem negar os poderes de representação das artes. Estou com ele, como quando diz que os críticos de arte exaltam Malevitch e depreciam Bonnard apenas porque este é figurativo; mas aquelas frases também precisam ser vistas em seu contexto. Nem Borges nem Mallarmé fizeram “arte pela arte”, e Borges notou sempre como são pobres e mutiladas as palavras deixadas pelos séculos. A literatura deve renovar a linguagem corrente.

Ninguém como os escritores, afinal, nos alertam para os perigos da literatura. Quase todos os grandes personagens são leitores: Dom Quixote passa a delirar com a ideia do triunfo depois de ler romances de cavalaria, mas a realidade que encontra é tão diferente que ele só apanha, ainda que Sancho Pança lhe faça o contraponto; Hamlet lê o tempo todo, “palavras, palavras, palavras”, enquanto matuta um plano de ação que desmascare o poder; os terroristas de Dostoiévski e Conrad são leitores vorazes; Madame Bovary só encontra nos romances a ausência do tédio que lhe consome dias e noites; Dom Casmurro também absorveu sua dose de clássicos; Gustav Aschenbach vai a Veneza já afetado pelo vírus do idealismo que os livros inocularam; Artur Sammler sonha ser como um esteta inglês tão refinado que os males da metrópole não o atinjam. E autores como Elias Canetti (Auto-de-Fé) e Italo Svevo (A Consciência de Zeno) trataram diretamente do tema. Desconfiar das fantasias e teorias que os livros trazem é fundamental; para isso, é preciso ler muito.

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